O tuíte abaixo do pastor Jonas Madureira aqueceu mais ainda um debate trazido por causa da pandemia do novo coronavírus: é correto a realização de uma ceia virtual?
Leia:
Enquanto pastores de algumas igrejas, forçados aos encontros virtuais por causa dos decretos de isolamento, continuam com suas atividades nas plataformas virtuais (cultos e também batismos e ceias), outros se limitam somente aos cultos online, pois não veem a possibilidade de realizar ceia e batismo porque, para estes, estas ordenanças perderiam sua essência ao não serem realizadas presencialmente.
Para o pastor Jonas, o tema deve ser tratado por cada igreja em particular, mas sem que haja julgamento por parte de quem faz ou não.
“Se a sua vai fazer ceia on-line e a minha não, OK, é uma questão confessional. Só não pense que minha igreja tem menos comunhão que a sua porque ela decidiu não celebrar a ceia on-line. +“, escreveu.
Qual a sua opinião? Deixamos abaixo um estudo sobre o tema para ajudar em seu conceito:
Ceia virtual On-line? Como a exegese pode ajudar?
Vejam como a teologia é dinâmica! Com o passar do tempo novas perguntas surgem e perguntas antigas são feitas de formas diferentes. Para todas as respostas, a Bíblia deve continuar sendo a nossa única regra de fé e de prática. Uma pergunta que atualmente tem dividido teólogos ao redor do mundo é a seguinte: Considerando o atual estado de distanciamento social por causa do novo Coronavírus e a possibilidade de fazermos reuniões virtuais, é correto ministrar a Ceia do Senhor online? Esse pequeno artigo visa a contribuir para a discussão apresentando alguns aspectos exegéticos do texto de 1 Coríntios 10 e 11.
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1) O verbo grego συνέρχομαι (synércomai).
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O verbo grego συνέρχομαι (synércomai) é muito importante no texto clássico da Ceia do Senhor, 1 Coríntios 11.17-34, pois ele aparece 5 vezes, nos versículos 17, 18, 20, 33 e 34. O verbo significa “reunir-se com outros como um grupo, ajuntar, agregar” (BDAG). A palavra é formada pela preposição syn, que significa “com” e pelo verbo ércomai, que significa “ir, vir”. É por isso, que a palavra também tem outros significados tais como “vir ou ir junto com uma ou mais pessoas, viajar junto com alguém” e “unir-se em relacionamento íntimo, ajuntar-se em um contexto sexual” (BDAG). Vejamos as ocorrências do verbo no texto em português:
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17 Nisto, porém, que vos prescrevo, não vos louvo, porquanto vos ajuntais não para melhor, e sim para pior.
18 Porque, antes de tudo, estou informado haver divisões entre vós quando vos reunis na igreja; e eu, em parte, o creio.
20 Quando, pois, vos reunis no mesmo lugar, não é a ceia do Senhor que comeis.
33 Assim, pois, irmãos meus, quando vos reunis para comer, esperai uns pelos outros.
34 Se alguém tem fome, coma em casa, a fim de não vos reunirdes para juízo. Quanto às demais coisas, eu as ordenarei quando for ter convosco.
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Note que o uso do verbo acontece no começo do texto (v. 17, 18 e 20) e no final (v. 33 e 34), formando assim uma moldura que “abraça” todo o texto e destacando por meio da estrutura a importância do conceito.[1] Note que, além do uso do verbo no versículo 18, Paulo qualifica essa reunião como sendo uma reunião “na igreja” (συνερχομένων ὑμῶν ἐν ἐκκλησίᾳ). Os irmãos coríntios se reuniam em casas, nas casas das pessoas mais abastadas da comunidade, ainda assim, quando eles estavam reunidos, era ali que estava presente a igreja. No versículo 20, Paulo qualifica a reunião como sendo “no mesmo lugar” (Συνερχομένων οὖν ὑμῶν ἐπὶ τὸ αὐτὸ), novamente enfatizando a ideia que o verbo já deixava clara.
2) O problema enfrentado pelos Coríntios na ceia
O grande problema do qual Paulo está tratando ao escrever esse trecho é que os Coríntios haviam transformado a Santa Ceia em um momento de divisão em vez de comunhão. Paulo diz que eles estavam se ajuntando “não para melhor, e sim para pior”. A NVI interpreta corretamente essa expressão de Paulo dizendo “as reuniões de vocês mais fazem mal do que bem”. O problema é que havia divisões (σχίσματα, skísmata) entre os coríntios quando comiam a ceia (v. 18). Durante a ceia eles se dividiam em partidos, facções (αἱρέσεις, hairésseis). Paulo torna o problema totalmente explícito no versículo 21: “Porque, ao comerdes, cada um toma, antecipadamente, a sua própria ceia; e há quem tenha fome, ao passo que há também quem se embriague”. Na época do Novo Testamento, a Santa a Ceia era uma refeição mesmo. Aparentemente, as próprias pessoas levavam a comida para compartilharem. O que parece acontecer em Corinto é que as pessoas não compartilhavam o que haviam levado (cada um toma a sua própria ceia, (ἕκαστος γὰρ τὸ ἴδιον δεῖπνον προλαμβάνει ἐν τῷ φαγεῖν). O momento havia deixado de ser a Ceia “do Senhor” (v. 20) para ser a ceia própria “de cada um” (v. 21). Essa divisão fica clara também no fato de que eles faziam isso com uma pressa enorme, cada um tomava a sua própria ceia “antecipadamente” (προλαμβάνει). Ou seja, em vez de esperarem uns pelos outros, aqueles que tinham mais condições financeiras parece que começavam a refeição antes dos mais pobres chegarem.
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O triste resultado é que na festa máxima da comunhão da igreja, as pessoas de melhor condição financeira ficavam empanturradas e bêbadas e aqueles que condição social mais baixa passavam fome! Dessa forma, a igreja era desprezada e aqueles que nada tinham (τοὺς μὴ ἔχοντας), ou seja, os pobres, eram envergonhados. Esse tipo de desprezo da comunhão e da unidade da igreja no momento da ceia estava causando o enfraquecimento e até mesmo a morte de alguns membros da igreja coríntia (v. 30).
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Qual é a solução proposta pelo apóstolo? A solução de Paulo no final do texto (v. 33 e 34) é que os coríntios esperassem uns pelos outros (ἀλλήλους ἐκδέχεσθε) e matassem a fome em suas próprias casas (ἐν οἴκῳ ἐσθιέτω) a fim de não se reunirem para juízo.
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3) O Significado da Santa Ceia em 1 Coríntios 10
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Não é só em 1 Coríntios 11.17-34 que Paulo fala sobre a Santa Ceia, mas em 1 Coríntios 10 o apóstolo também ensina sobre esse maravilhoso sacramento. Em 1 Coríntios 8 a 10, Paulo está ensinando sobre se o cristão pode ou não comer comida sacrificada a ídolos. Nesse contexto, Paulo fala sobre o antigo Israel e diz que eles foram batizados no mar (1Co 10.1-2) e eles também tomaram uma espécie de Santa Ceia (1Co 10.3-4). No entanto, isso não os impediu de serem mortos e espalhados pelo deserto por se envolverem com idolatria e festas pagãs.
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Quando Paulo vai aplicar os exemplos do antigo Israel (1Co 10.1-13) para a igreja (1Co 10.14-22), ele foca totalmente na Santa Ceia e no absurdo de alguém que participa da comunhão do pão e do cálice querer participar também de festas pagãs com comidas dedicadas a ídolos. O versículo central da argumentação de Paulo é 1Co 10.16: “Porventura, o cálice da bênção [τὸ ποτήριον τῆς εὐλογίας] que abençoamos [ὃ εὐλογοῦμεν] não é a comunhão [κοινωνία] do sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão [κοινωνία] do corpo de Cristo?”
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O apóstolo está argumentando que quando participamos da Ceia do Senhor, nós estamos de alguma forma, nos tornando ainda mais participantes do corpo e do sangue de Cristo, ou seja, eles estão se tornando comuns a nós, são-nos comunicados espiritualmente. Na Santa Ceia existe uma transação espiritual acontecendo. O celebrante abençoa os elementos e esses elementos levam a bênção para o povo de Deus e essa bênção diz respeito a uma participação maior no sangue e no corpo de Jesus Cristo e os benefícios que estes nos trazem.
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Em todo esse trecho (1Co 10), Paulo se refere aos elementos da Santa Ceia e suas referentes no singular: “comeram um só manjar espiritual” (1Co 10.3), “bebiam da mesma fonte espiritual” (1Co 10.4), “bebiam de uma pedra espiritual” (1Co 10.4); “o cálice da bênção que abençoamos” (1Co 10.16); “o pão que partimos” (1Co 10.16), “um pão, um só corpo… único pão” (1Co 10.17); “o cálice do Senhor” (1Co 10.21) e “a mesa do Senhor” (1Co 10.21).
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Por meio dos conceitos de bênção (eulogia), comunhão (comunalidade, koinōnia) e insistente singular nos elementos, Paulo está deixando claro que o significado profundo e sobrenatural da Santa Ceia diz respeito a uma comunhão e unidade que os cristãos têm com Cristo e consequentemente entre si.
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4) O Significado da Santa Ceia em 1 Coríntios 11
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O capítulo 11 de 1 Coríntios mostra uma riqueza imensa no que concerne aos significados e aplicações práticas da Santa Ceia. O texto fala da Ceia como um momento de obediência (1Co 11.23-25), unidade cristã (1Co 11.23-25), rememoração do sacrifício vicário de Cristo (1Co 11.23-25), proclamação da morte substitutiva do Senhor (1Co 11.26), esperança da parousia (volta) de Jesus (1Co 11.26) e autoexame (1Co 11.28). Explorar cada um desses significados extrapolaria os nossos objetivos nesse artigo, então focaremos naquele que mais diz respeito ao nosso assunto.
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O que Paulo quer dizer pelas expressões “comer o pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente”; “Examine-se, pois, o homem a si mesmo” e por “quem come e bebe sem discernir o corpo”. É evidente no texto que essas expressões estão inter-relacionadas. Devemos examinar a nós mesmos para não comermos sem discernir o corpo, o que seria sinônimo de comer e beber indignamente. Fazê-lo, atrai juízo. Mas, o que é isso?
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Considerando o que vimos nos pontos 1 e 2 desse artigo, comer indignamente, ou seja, sem discernir o corpo é comer de tal forma a desprezar a unidade do corpo de Cristo. Os coríntios comiam de forma indigna quando desprezavam a unidade e comunhão do corpo de Cristo na hora da ceia, fazendo com que a igreja se dividisse em partidos por questões socioeconômicas. O autoexame recomendado por Paulo, dessa forma, não diz respeito a um exame pessoal a respeito dos mais diversos pecados que porventura o participante tenha cometido, mas é uma ordem para avaliar se em nossa maneira de agir temos desprezado a comunhão e unidade que devem caracterizar o Corpo de Cristo, ou seja, a Igreja.
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Apontamentos Finais
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O principal assunto da Santa Ceia, conforme apresentada por Paulo em 1 Coríntios, diz respeito à união do Corpo de Cristo. Vimos que essa união dizia respeito (1) ao ajuntamento; (2) a lutarem contra divisões humanas, (3) à comunhão de todos com o único pão que é Cristo e (4) ao dever de se examinar se estamos sendo dignos do corpo de Cristo (igreja) ao comermos.
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- Essa análise, mostra que devemos pensar criticamente a respeito da maneira habitual da ceia em nossas igrejas: cada crente com um pequeno cálice e um pequeno pão, previamente preparados, examinando os seus próprios pecados de maneira individual. À luz do nosso texto, seria esta é a melhor maneira de celebrarmos esse sacramento cheio de significado e realidade sobrenatural? Ou será que a nossa maneira habitual já não é individualista demais?
. - Em uma possível “Ceia virtual” não estaríamos reunidos (em assembleia e no mesmo lugar), os aspectos da unidade ficariam esfacelados à medida em que não estaríamos comendo de um mesmo pão e bebendo de um mesmo cálice; a noção de corpo de Cristo estaria prejudicada por causa da distância física.
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Assim, à luz de tudo o que vimos, parece-nos, também, que uma celebração da Santa Ceia na qual cada cristão está em sua própria casa, prepara o seu próprio pão e come e bebe enquanto participa do “culto on-line” não faz justiça a toda a riqueza de significado que Paulo atribui à ceia, nem as instruções práticas transmitidas por Jesus para o apóstolo.
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O prof. João Paulo ministrará online os módulos de Exegese e Pregação em 1 Coríntios (22 a 26 de junho de 2020) e presencialmente o módulo União com Cristo no Novo Testamento (9 a 13 de novembro), entre outros.
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Escrito por João Paulo Thomaz de Aquino no site Mackenzie