Da redação JM
As igrejas pentecostais no Brasil, em especial a Assembleia de Deus, maior denominação pentecostal do mundo, passam por um momento onde veem seus membros abandonando a doutrina pentecostal e abraçando o calvinismo/cessacionismo. Esse fenômeno batizado por alguns teólogos de “êxodo pentecostal tem chamado a atenção e feito com que os líderes pentecostais reflitam por quais motivos isso tem acontecido.
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Recentemente, o pastor presbiteriano (calvinista) Augustus Nicodemus falou desse “êxodo pentecostal” para as igrejas reformadas e gerou polêmica. Na época, o teólogo pediu que pastores das igrejas reformadas se preparassem para receber centenas de fieis pentecostais e neopentecostais que estão saindo de suas igrejas. “Os reformados precisam se preparar para receber as centenas e centenas de irmãos pentecostais e neopentecostais que descobriram a fé reformada pela internet e estão vindo cheios de expectativa e esperança para as suas igrejas“, disse.
Nicodemus também já afirmou que os membros dessas igrejas estão “procurando alguém que pregue Bíblia”, ao se referir à saída de alguns crentes pentecostais e neopentecostais de suas igrejas. “E quando a pessoa menos espera ela diz: ‘eu não posso continuar na minha igreja’, porque eu aprendi o que é a Bíblia“, disse.
Pentecostal elenca motivos
Para contribuir com o debate e reflexão dos pastores pentecostais sobre o tema, o teólogo e escritor pastor César Moisés Carvalho escreveu o artigo os “10 pontos que esclarecem como o Calvinismo/Cessacionismo infiltrou-se em nosso meio e está ‘despentecostalizando’ o pentecostalismo“.
Carvalho destaca que uma série de fatores contribuiu para esse declínio no meio pentecostal.
Confira:
1) Há mais ou menos 20 anos existe um clamor geral, uma percepção muito sensível por parte dos pentecostais de que o Movimento Pentecostal, em muitos lugares, aos poucos foi pendendo para práticas neopentecostais (sem fundamento bíblico e muito ligadas à chamada “teologia da prosperidade”) abrindo um vácuo doutrinário enorme que deveria ter sido preenchido por um resgate do Pentecostalismo genuíno (cujas características sempre foram a pregação evangelística e ungida, os estudos bíblicos, a oração, o batismo no Espírito Santo como revestimento de poder para cumprir o Ide de Jesus, o exercício dos dons — sobretudo a profecia — e a frequência na Escola Bíblica Dominical);
2) Este vácuo doutrinário coincidiu com o arrefecimento de práticas típicas do Movimento Pentecostal — evangelismo pessoal, cultos ao ar livre, cultos de doutrina e reuniões de oração — e uma maior abertura nos “usos e costumes”, levando os crentes a adquirirem televisão e outros meios de comunicação. Essa abertura fez com que os programas evangélicos televisivos — que inicialmente diziam ser para evangelizar —, se tornassem a principal “fonte doutrinária” dos pentecostais, levando as gerações mais antigas (menos alfabetizadas) e as gerações mais novas, ao comodismo e a uma superficialidade bíblica que logo se transformaram em decepção com falsas curas e milagres forjados (dado que muitos desses programas querem apenas conquistar contribuintes e não instruir pessoas, apela-se então para o sensacionalismo);
3) No afã de não perder sua membresia, muitas lideranças resolveram neopentecostalizar suas igrejas, imitando práticas estranhas ao Movimento Pentecostal, como por exemplo, criando cultos específicos para se cumprir uma agenda, retirando a espontaneidade do Espírito que sempre caracterizou o Pentecostalismo Clássico, época que Jesus curava em toda e qualquer reunião, não tendo necessidade alguma de se estabelecer um dia específico para tal. É curioso pensar também no fato de que, concomitantemente, uma vez que o neopentecostalismo não valoriza o batismo no Espírito Santo — característica principal do Pentecostalismo Clássico —, tal doutrina e experiência, foi ficando cada mais escassa. No outro extremo, visando produzir artificialmente tais manifestações espirituais, manipuladores enganavam auditórios e então retirava a credibilidade de uma experiência fundamental para o Pentecostalismo;
4) Neste período, de forma proporcional, os jovens passaram a estudar mais e, por isso mesmo, foram tendo acesso a bens que se tornaram mais acessíveis, tais como planos de saúde, imóveis e veículos, além de posições sociais de destaque, antes reservadas unicamente aos mais abastados. Não é segredo que o Movimento Pentecostal, sobretudo, em seus primeiros 50/60 anos, foi formado majoritariamente pelas camadas mais pobres da sociedade, tanto nos EUA quanto no Brasil. Com mais instrução e uma melhor condição financeira, numa igreja local que não mais tinha o poder do Espírito de forma autêntica e genuína, restou apenas a justa vergonha do que se fazia em nome do Pentecostalismo, mas que de Pentecostalismo mesmo nada tem;
5) É importante lembrar que, a despeito de o Pentecostalismo ter contado com obreiros que possuíam formação teológica em seu início, especialmente os missionários estrangeiros, não foi essa formação que os impulsionou a vir ao Brasil pregar, mas sim o batismo no Espírito Santo evidenciado pelo falar em línguas estranhas. Assim, desde sempre foram pré-requisitos no Movimento Pentecostal para alguém exercer o ministério: 1) Chamada divina e 2) batismo no Espírito Santo. Assim, em vez de enviar alguém vocacionado ao ministério, para um instituto, seminário ou faculdade teológica, a pessoa, inicialmente membro atuante na igreja, era separada e simplesmente autorizada a exercer seu trabalho sem preocupação alguma com o aspecto do estudo formal, bastando que ela soubesse ler e tivesse certa habilidade em comunicar. Neste tempo, alguns institutos e seminários, bem como cursos teológicos à distância, ou básicos, foram criados, mas nenhum deles com preocupações acadêmicas, e sim ministeriais. Por isso, é importante frisar que, neste vácuo doutrinário, diferentemente das primeiras gerações do Pentecostalismo, cresceu, sobretudo em congregações e igrejas nos interiores, obreiros sem estudo formal, tendo até mesmo sido alimentado um anti-intelectualismo que, como se sabe, em muitas expressões do cristianismo protestante gerou aridez e incredulidade, fazendo com que houvesse essa desconfiança que acabou, de certa forma, favorecendo o vácuo doutrinário e a ascensão de um discurso religioso racionalista para preenchê-lo;
6) Por essa época, expoentes reformados calibraram seus discursos e baixaram o tom — criticando menos explicitamente o Pentecostalismo — e começaram a investir em duas frentes: 1) Redes sociais e 2) literatura com linguagem popular. Tal literatura encontrava aderência entre pentecostais visto que atacava um “inimigo comum”: o neopentecostalismo. Como parecia que os dois segmentos cristãos lutavam por uma mesma causa, ou seja, a proteção do cristianismo e o combate à banalização do sagrado, não demorou muito para que se iniciasse um “intercâmbio” e um “êxodo”: O “intercâmbio” é unilateral, por isso as aspas, ou seja, os expoentes reformados — leia-se, os especificamente calvinistas e cessacionistas —, passaram a pregar e ensinar em igrejas pentecostais, sem sequer imaginar o contrário, que seria um pentecostal ir pregar ou ensinar em uma igreja tradicional ou histórica. Ao ministrar numa igreja pentecostal, com mais preparo dentro de suas tradições, eles encantam os jovens que, cansados da neopentecostalização e por não conhecerem o verdadeiro e genuíno Pentecostalismo, acabam completamente cativados pelos discursos dos calvinistas. Obviamente que eles não pregam sobre o Espírito Santo ou salvação, mas ao se tornarem conhecidos, eles — via editoras ou grupos para-eclesiásticos —, passaram então a organizar eventos teológicos em locais neutros e os pentecostais, ávidos por saber, formavam o público majoritário. Ali sim, sem nenhum preparo bíblico ou teológico proveniente do Pentecostalismo, é destilado todo tipo de ensinamento frontalmente contrário às bases do Pentecostalismo Clássico que são formadas pela crença na expiação ilimitada e a experiência do Espírito Santo, por exemplo, fazendo com que pentecostais, em sua maioria sem terem passado por uma experiência real no Espírito, na perspectiva pentecostal, abandonassem o Movimento Pentecostal, mudando a direção do êxodo anterior que foi a saída dos crentes tradicionais das igrejas históricas para o Movimento Pentecostal ou até mesmo àquelas igrejas se tornarem renovadas;
7) Unido a esse fator, outro fenômeno teve lugar entre nós. A publicação de obras de autores reformados que, não obstante, não tratarem de temas como a pneumatologia ou soteriologia, foram popularizando autores calvinistas que eram desconhecidos de nós, pois a única coisa que se sabia popularmente do calvinismo nos meios pentecostais leigos está evidenciado no mote predestinacionista: “Uma vez salvo, salvo para sempre”. Um exemplo para ilustrar o ponto de como um livro pode ajudar nesse processo, trata-se da obra “E Agora, Como Viveremos?”, publicada há 19 anos, e que foi responsável por popularizar — entre os pentecostais —, um termo muito pronunciado atualmente: “Cosmovisão” (também “cosmovisão cristã”). Apesar de os autores dizerem, genericamente, que o “cristianismo é uma cosmovisão”, é importante atentar a que vertente da religião cristã eles se referem. Não precisa muito esforço para certificar-se, pois os próprios autores informam, que escreveram seu livro tendo à mente o tempo todo, a obra “Calvinismo”, de autoria de Abraham Kuyper, teólogo calvinista holandês, do século 18, que fora primeiro-ministro da Holanda. Kuyper foi quem, através de sua influência política, implementou o chamado neocalvinismo na Holanda, dominando a vida cultural e política, sendo praticamente responsável pela elaboração, não tanto do conceito, mas do sistema neocalvinista que atualmente é chamado de movimento de “cosmovisão cristã”. Uma filosofia que influencia todos os aspectos da vida, indo desde a família até a política. Uma vez que por causa da posição teológica pré-milenista — que crê que o arrebatamento da Igreja pode ocorrer a qualquer instante e, por isso mesmo, o máximo de pessoas deve ser salvo —, a missão do Movimento Pentecostal concentrou-se em evangelizar, não se preocupando com a ideia de que, se Jesus não voltasse logo, as mudanças trariam demandas que precisariam de respostas em outros campos, os jovens que buscavam orientações em áreas diversas, e que não tinham respostas no Pentecostalismo encontraram, ao menos provisoriamente, nas literaturas e exposições calvinistas, as respostas racionalistas que respondiam, momentaneamente, algumas questões, sem, porém, saber que abraçar a chamada “cosmovisão cristã”, tal como apresentada na literatura reformada, equivalia a aceitar o neocalvinismo, e isso significa romper com várias doutrinas caras do Pentecostalismo;
8) Como forma de compensar a lacuna dos carismas, e para que os pentecostais não sintam tanta diferença inicialmente, os cessacionistas oferecem uma ênfase no fruto do Espírito como se este competisse, ou fosse mais importante, que os dons do mesmo Espírito. Isso fazem apoiando-se em textos paulinos que não ensinam o cessacionismo, mas o equilíbrio. Além do mais, dizer que no Pentecostalismo não há valorização do fruto do Espírito, mas apenas “movimento”, tomando como exemplo a igreja de Corinto, é desonestidade intelectual, pois a correção paulina não visava extinguir a manifestação do Espírito, mas trazer ordem e equilibro. Além disso, a despeito de até alguns anos não se ter muito corrente, no Pentecostalismo, o ensino e a pregação diretos acerca do fruto do Espírito, ele sempre existiu na prática pentecostal com sua ênfase no ensino acerca da necessidade de santificação para o crente;
9) Com os pentecostais já habituados à leitura, pregação e ensino cessacionistas, e a condenação de ambos os segmentos cristãos — Pentecostalismo e Calvinismo — das práticas decadentes do neopentecostalismo, foi um pulo para a desvalorização dos dons e das manifestações do Espírito que sempre caracterizaram o Movimento Pentecostal. Como isso foi feito? Com a persuasão dos expoentes calvinistas de que o neopentecostalismo é apenas uma variação, não muito distante do pentecostalismo, e que é preciso evoluir dessa crença, para outra menos centrada na experiência (como se todas fossem espúrias e inverídicas) e mais centrada na “palavra” (como se doutrinação calvinista e/ou cessacionista, fosse equivalente à Bíblia). Uma obra muito lida e popularizada no movimento evangélico como um todo, de autoria de um dos mais populares expoentes do calvinismo no Brasil acusa — e responsabiliza — em um de seus livros, de ser o arminianismo que, segundo ele, é centrado no homem, e o que ele chama de “invasão da espiritualidade mística centrada na experiência, fruto do reavivalismo pelagiano de Charles Finney” (“O que estão fazendo com a igreja?, p.22), os responsáveis por todas as mazelas do movimento evangélico no país. Em outras palavras: Cristão de verdade não pode ser arminiano e nem pentecostal, pois esses são subprodutos da fé, apêndices da religião cristã. E ele, a despeito de zombar abertamente do Movimento Pentecostal, encontra simpatia de muitos pentecostais e tem oportunidade de falar em nossos púlpitos, seminários e faculdades de teologia, contando com a simpatia e condescendência de muitos expoentes pentecostais que juntam-se a ele em suas críticas, querendo parecer que esse seria o melhor caminho para consertar os excessos que aqui e acolá são feitos em nome do Pentecostalismo. Contudo, a questão mais emblemática do referido livro que sugere que estão destruindo a igreja e coloca o arminianismo e a experiência pentecostal como responsáveis por todos os abusos que acontecem na movimento evangélico, é o capítulo “Carta a um pastor pentecostal que virou reformado”. Neste texto, é perceptível o incentivo para que o “pastor pentecostal que virou reformado”, não saia de sua igreja local, mas permaneça para que possa “converter” os demais irmãos à “verdadeira fé” — que seria o calvinismo cessacionista — e para que os levem a “evoluir” da posição decadente de “semipelagianos-erasmianos-arminianos” e passem a ser “agostinianos-calvinistas-puritanos” (p.179), estes sim, os verdadeiros cristãos e herdeiros da Reforma;
10) Portanto, quando um calvinista/cessacionista elogia um pentecostal, não é por causa da “ortodoxia” deste, pois o pentecostalismo esposa todas as doutrinas mestras do cristianismo e, mesmo assim, demorou muito, nos EUA por exemplo, para ser reconhecido como segmento cristão por parte dos calvinistas/cessacionistas (muito embora a Bíblia é quem detém tal autoridade e não um segmento cristão que, como todos os demais, possui defeitos e qualidades). Então, o “elogio” vem pelo fato de o “pentecostal” já ter deixado — consciente ou inconscientemente — de ser pentecostal, tornando-se calvinista/cessacionista em sua forma de pensar e avaliar as coisas, tendo alguns até vergonha dos irmãos barulhentos e, por achar-se “racional” e mais palatável aos olhos da sociedade, seja por vergonha, preconceito ou por ter sido convencido, pelo cessacionismo, de que não há base bíblica para as manifestações pentecostais, agora fica entre nós na tentativa de, conforme instruiu o expoente calvinista/cessacionista em seu livro, nos converter. Portanto, quando você se encontrar com algum “pentecostal” que 1) defende ardorosamente o calvinismo (chamado também de protestantismo histórico), 2) zomba dos irmãos falando em línguas e até imita-os em rodinhas com calvinistas/cessacionistas, 3) descrê que possa haver sinceridade em pessoas que se expressam mais corporal e verbalmente no culto, mas não tem disposição alguma para ensinar os novos convertidos ou “meninos na fé”, corrigindo-os para que sejam adultos, 4) que em razão de já se ter a Bíblia, e de a revelação estar completa, questiona a existência, nos dias atuais, do dom ministerial de profeta, ou a prática do dom de profecia, mas não esboça nenhuma dúvida em relação ao que ensina o Calvinismo, 5) se ele ostenta abertamente um pensamento hiper-racionalista, desvalorizando a experiência real do Espírito, mas ainda não se declarou abertamente calvinista/cessacionista, avise-o de que ele está no segmento errado, pois nós somos pentecostais e cremos na atualidade dos dons e manifestações espirituais, evidenciados de forma experiencial e com farta base escriturística.
César Moisés Carvalho
O pastor César é pedagogo, chefe do Setor de Educação Cristã da CPAD e professor universitário. É também autor de vários livros, todos publicado pela editora pentecostal CPAD.