Artigo de Zeynep Tufekci/ The New York Times
No mesmo momento em que apenas começa a se recuperar da devastação do Covid-19, o mundo enfrenta a possibilidade de uma pandemia de um patógeno muito mais mortal.
A gripe aviária – conhecida mais formalmente como influenza aviária – há muito paira nos horizontes dos temores dos cientistas. Esse patógeno, especialmente a cepa H5N1, não infecta humanos com frequência, mas, quando o faz, 56% das pessoas conhecidas por contraí-lo morrem. Sua incapacidade de se espalhar facilmente, se é que se espalha, de uma pessoa para outra o impediu de causar uma pandemia.
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Mas as coisas estão mudando . O vírus, que há muito causa surtos entre aves, está infectando cada vez mais aves migratórias, permitindo que se espalhe mais amplamente , até mesmo para vários mamíferos, aumentando o risco de que uma nova variante possa se espalhar para e entre as pessoas.
De forma alarmante, foi relatado recentemente que uma cepa H5N1 mutante estava não apenas infectando visons em uma fazenda de peles na Espanha, mas também, provavelmente, se espalhando entre eles, registro sem precedente entre os mamíferos. Pior ainda, o trato respiratório superior do vison é excepcionalmente adequado para atuar como um canal para os humanos , disse-me Thomas Peacock , um virologista que estudou a gripe aviária.
O mundo precisa agir agora, antes que o H5N1 tenha qualquer chance de se tornar uma pandemia devastadora. Temos muitas das ferramentas necessárias, incluindo vacinas. O que falta é senso de urgência e ação imediata.
A melhor defesa contra um novo patógeno mortal é suprimir agressivamente os primeiros surtos, o que primeiro requer detectá-los rapidamente. Os Estados Unidos, a Organização Mundial da Saúde e as autoridades globais de saúde já possuem redes de vigilância da gripe, mas muitos especialistas em gripe aviária me disseram que não acham que as redes estejam funcionando bem o suficiente, dado o nível de ameaça. Essa vigilância precisaria priorizar as pessoas que atuam na indústria avícola, mas também expandir além disso.
Thijs Kuiken, especialista em gripe aviária do Centro Médico da Universidade Erasmus em Roterdã, na Holanda, diz que fazendas de porcos – outra espécie suscetível à gripe – também devem ser vigiadas quanto à gripe aviária . As pessoas que interagem com pássaros e animais selvagens, bem como espécies suscetíveis de animais de estimação, como furões, também correm maior risco. Porém, não basta detectar: o controle exigiria um grande esforço e uma coordenação global.
Infelizmente, as fazendas de visons devem ser fechadas – mesmo que isso signifique matar os visons. Eles, de qualquer maneira, são normalmente mortos por volta dos 6 meses de idade por causa de sua pele. É difícil imaginar uma maneira melhor de incubar e espalhar um vírus mortal do que deixá-lo evoluir entre dezenas de milhares de animais amontoados com um trato respiratório superior semelhante ao nosso.
Quando o coronavírus infectou fazendas de visons dinamarquesas em 2020 e os visons geraram novas variantes que infectaram humanos, os esforços para salvar a indústria foram inúteis porque os surtos se tornaram incontroláveis.
Se diferentes cepas de gripe infectarem a mesma pessoa simultaneamente, as cepas podem trocar segmentos de genes e dar origem a novas cepas, mais transmissíveis . Se um criador de vison com gripe também for infectado pelo H5N1, isso pode ser o suficiente para desencadear uma pandemia.
Para evitar isso, os testes rápidos devem estar amplamente disponíveis e fáceis de obter em todo o mundo, especialmente para trabalhadores aviários e pessoas que lidam com aves selvagens ou outros animais selvagens. E os recursos de teste atuais devem ser rapidamente expandidos. Existem 91 laboratórios de saúde pública nos Estados Unidos que podem testar a gripe H5. Os resultados positivos são enviados para os Centros de Controle e Prevenção de Doenças, onde análises posteriores podem detectar o H5N1 em cerca de 48 horas. Mas os planos devem estar em vigor para aumentar a quantidade de testes e instalações de teste, caso a demanda aumente.
Talvez a melhor notícia seja que temos várias vacinas H5N1 já aprovadas pela Food and Drug Administration, cuja segurança e resposta imune foram estudadas.
O governo dos Estados Unidos tem um pequeno estoque de vacinas contra o H5N1, mas não chegaria nem perto do suficiente caso ocorresse um surto grave. O plano atual é produzi-las em massa se e quando tal surto ocorrer, com base na variante específica envolvida.
Porém, existem vários problemas com essa abordagem, mesmo nos melhores cenários. A produção de centenas de milhões de doses de uma nova vacina pode levar seis meses ou mais.
O mais preocupante é que todas as vacinas aprovadas , exceto uma, são produzidas incubando cada dose em um ovo. O governo dos EUA mantém centenas de milhares de galinhas em fazendas secretas protegidas por guarda-costas. (É verdade!) Mas os guarda-costas estão lá, provavelmente, para evitar terroristas, não um vírus. Contar com galinhas para produzir vacinas contra um vírus que tem uma taxa de mortalidade de 90% a 100% entre aves domésticas tem os ingredientes do enigma do que veio primeiro, o ovo ou a galinha.
A única empresa com uma vacina H5N1 não baseada em ovo aprovada pela FDA espera ser capaz de produzir 150 milhões de doses em um espaço de seis meses após a declaração de uma pandemia. Mas há sete bilhões de pessoas no mundo.
As plataformas baseadas em mRNA (vacinas com tecnologia de RNA mensageiro) adotadas para produzir duas das vacinas contra a Covid também não dependem de ovos. Scott Hensley, especialista em gripe da Universidade da Pensilvânia, disse-me que essas vacinas podem ser produzidas em massa mais rapidamente, em apenas três meses. Atualmente não há vacinas de mRNA aprovadas para influenza, mas os esforços para desenvolvê-las devem ser acelerados.
Se a OMS pretende assumir a liderança na expansão da fabricação global de vacinas, ela precisa do apoio dos países ricos e da cooperação de grandes empresas farmacêuticas que possuem patentes e know-how.
Um grande desafio para o armazenamento de vacinas contra a gripe é que elas podem perder a potência com o tempo e precisam ser atualizadas à medida que surjam novas variantes. O governo dos EUA está cético quanto à criação de um grande estoque, temendo que as vacinas armazenadas possam não ser eficazes contra qualquer cepa que se torne pandêmica, e teme que, de qualquer maneira, os estoques expirem. As autoridades também acreditam que podem obter rapidamente novas vacinas contra a gripe produzindo-as em massa.
Muitos especialistas em influenza me disseram que vacinas mais antigas ainda poderiam fornecer alguma proteção contra resultados graves ou morte. Peter Palese , professor de microbiologia na Escola de Medicina Icahn em Mount Sinai, que estabeleceu os primeiros mapas genéticos para os vírus influenza A, B e C, disse-me que tais estoques seriam especialmente úteis para trabalhadores essenciais.
Em 2017, o CDC constatou que a vacina H5N1 feita em 2004 e 2005 ajudou a proteger os furões contra um vírus H5N2 em 2014. Investigações em 2006 mostraram que 80% do estoque de vacinas anteriores contra o H5N1 nos EUA ainda eram potentes um ano após transcorrido o esperado prazo de validade. Em 2019, outro estudo descobriu que as vacinas H5N1 produzidas em 2004 ainda eram potentes 12 anos depois.
Também poderíamos permitir a vacinação voluntária, especialmente para grupos de alto risco, como avicultores e profissionais de saúde, que estariam tratando pacientes caso surgissem surtos. A vacinação voluntária também pode produzir dados em maior escala sobre a segurança e a dosagem específica das vacinas. A vacinação dos avicultores tem o grande benefício adicional de ajudar a suprimir os surtos em primeiro lugar.
Vários especialistas em influenza com quem conversei lamentaram a falta de uma vacinação mais ampla para galinhas e perus. Se todas as aves tivessem sido vacinadas anteriormente, talvez o H5N1 nunca tivesse se espalhado tão amplamente para as aves selvagens. É tarde, mas a vacinação em massa de aves e suínos deve começar rapidamente.
Até mesmo vacinar mais pessoas – especialmente criadores de aves e suínos – contra a gripe comum pode ajudar. Com menos gripe regular no mundo, haveria menos hospedeiros para o vírus H5N1 co-infectar, um processo que pode conduzir àquelas cepas de H5N1 mais facilmente transmissíveis.
Já temos antivirais para influenza, que funcionam independentemente da cepa, mas precisam ser administrados precocemente, o que requer testes precoces generalizados, fácil acesso e estoques suficientes e equitativos em todo o mundo.
Os cientistas estão trabalhando em direção a uma vacina universal contra a gripe, com capacidade potencial para cobrir todas as variantes, bem como futuras pandemias – um tiro na lua, talvez, mas vale o investimento.
O aumento do ritmo de disseminação tem sido inquietante. Até 2020, quando a nova cepa do H5N1 começou a se espalhar extensivamente entre as aves silvestres, a maioria dos grandes surtos ocorreu entre as aves domésticas. Mas agora, com aves selvagens atuando como condutores, este não é apenas o maior surto de todos os tempos entre aves (já causou a morte de pelo menos 150 milhões de animais até agora), mas também vem expandindo continuamente seu alcance, incluindo espécies de mamíferos como golfinhos e ursos .
Em 2006, quando os cientistas descobriram que o H5N1 não se espalhava facilmente entre os humanos porque se instala profundamente em seus pulmões, Kuiken, do Erasmus University Medical Center, alertou que, se o vírus evoluísse para se ligar a receptores no trato respiratório superior – a partir dos quais poderia se tornar mais facilmente transportado pelo ar – o risco de uma pandemia entre os humanos aumentaria substancialmente. O surto de vison na Espanha é um sinal de que podemos estar seguindo exatamente esse caminho.
É difícil imaginar sinais de alerta mais claros e alarmantes de uma pandemia potencialmente terrível.
O público, é claro, não quer ouvir falar de outro vírus, e o Congresso nem está disposto a manter os esforços de financiamento contra o atual.
Poderíamos ter sorte – já tivemos surtos de gripe aviária antes sem propagação humana. Mas parece tolice contar com isso. Uma cepa pandêmica pode ter uma taxa de mortalidade muito menor do que os 56% dos casos humanos conhecidos até agora, mas ainda pode ser muito mais mortal do que o coronavírus, que se estima ter matado de 1% a 2% dos infectados antes que vacinas ou tratamentos estivessem disponíveis. Pandemias mortais de gripe ocorrem regularmente na história da humanidade e não esperam que as pessoas estejam recuperadas de um surto anterior, não importa o quão cansados possamos nos sentir.
Desta vez, não temos apenas o aviso, mas também muitas das ferramentas de que precisamos para evitar uma pandemia. Não devemos esperar até que seja tarde demais.
Observação: O artigo não retrata a opinião do portal, mas foi postado para reflexão sobre o possível futuro que se constroi pela mídia e governos.