Quando começou a escrever o livro que levaria seu nome, por volta do ano 687 a.C., o profeta Isaías mal podia imaginar que, 28 séculos depois, estaria metido em uma polêmica nas redes sociais. Segundo postagens que viralizaram nos últimos dias, o maior de todos os profetas de Israel teria predito, lá no século 7º antes da Era Cristã, a guerra civil na Síria.
Ou, para ser mais exato, a destruição de Damasco, a capital do país.
O versículo da discórdia é o primeiro do capítulo 17. “Damasco deixará de ser cidade e se transformará em um monte de ruínas”, diz o profeta. Outro trecho daBíblia, também compartilhado pelos internautas, é o versículo 24 do capítulo 49 de Jeremias. “Damasco desfalece e prepara a fuga. O medo se apodera dela. Está possuída de angústia e dores, como a mulher que está dando à luz.”
Será que, passado tanto tempo, os oráculos de Isaías e Jeremias finalmente se cumpriram? Ou, ao contrário, o uso dos textos da escritura não passam de ignorância ou mesmo má-fé para justificar, com base na religião, o conflito?
“Quando digo que a responsabilidade pela guerra na Síria é da profecia de Isaías, isento de culpa quem está por trás daquele genocídio”, raciocina o teólogo Frei Isidoro Mazzorolo, professor do Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. “É como se dissesse: não há nada que eu possa fazer para mudar aquela catástrofe porque ela é da vontade de Deus.”
O reverendo Arthur Nascimento, da Paróquia da Santíssima Trindade, da Diocese Anglicana de São Paulo, faz coro: “Não podemos jogar nos ombros de Deus uma responsabilidade que é nossa. Cabe a nós, comunidade internacional, encontrar uma solução para a guerra civil na Síria”.
Além disso, ele diz que é preciso cuidado ao interpretar textos sagrados: “A Bíblia foi escrita dentro de um contexto histórico. Recorrer a textos bíblicos fora de seus contextos originais pode ser altamente perigoso”.
O papel do profeta
Doutorando em História pela Universidade de Campinas (Unicamp), Jefferson Ramalho pondera que, ao contrário do que se imagina, profeta não é aquele que prevê ou adivinha o futuro, e sim quem denuncia o presente.
Já naquela época, Isaías tinha muito a denunciar: corrupção política, desigualdade socioeconômica, exploração do trabalho… “O texto de Isaías se refere à queda de Damasco, ocorrida no ano 732 a.C.”, diz o historiador.
Na época, Efraim (Reino de Israel) e Damasco (Reino de Aram) se uniram para lutar contra a Assíria. No capítulo 17, em vez de suspostamente predizer a queda da Síria no século 21, o profeta Isaías anuncia a derrota da coalizão e lamenta a destruição de Damasco. Dez anos depois, o exército assírio conquistou Samaria, a capital de Israel.
“Atrelar a atual guerra na Síria à profecia de Isaías é oportunismo religioso”, critica o reverendo Egon Kopereck, presidente da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB). “Essa interpretação provém de fundamentalistas religiosos que querem causar alvoroço dentro do povo cristão.”
Boatos sobre genocídios
Rumores que associam confrontos militares a profecias bíblicas não são novidade no mundo virtual. De tempos em tempos, surge um novo boato atribuindo atos de genocídio ao cumprimento de oráculos. Uma versão em inglês dessa profecia de Isaías que se espalhou agora pelo Brasil já havia corrido a Europa em 2013.
Outro exemplo disso é o versículo 28 do capítulo 23 do Evangelho de Lucas.
Nele, Jesus diz: “Mulheres de Jerusalém, não chorem por mim! Chorem por vocês mesmas e por seus filhos!”. E continua: “Felizes das mulheres que nunca tiveram filhos, dos ventres que nunca deram à luz e dos seios que nunca amamentaram!”. Já houve quem interpretasse esse trecho do Novo Testamento como uma profecia do Holocausto nazista, que dizimou 6 milhões de judeus durante a Segunda Guerra.
Secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), a pastora Romi Márcia Bencke reage com indignação às correntes de profecias relacionadas à Guerra na Síria: “Atribuir a Jesus a profecia pela morte dos judeus é uma afronta ao Evangelho. Jesus jamais expressou o desejo de morte de pessoas, ainda mais de um grupo. As críticas que Jesus fazia a Jerusalém tem relação com o Templo, um lugar não só religioso, mas também político e econômico”, contextualiza.
E hoje, o que fazer diante da guerra civil que, desde 2011, já matou 470 mil pessoas e expulsou outras 5 milhões de suas casas? “Mais do que simplesmente fazer uma leitura religiosa e um tanto quanto fantasiosa e anacrônica da Bíblia, devemos denunciar a crueldade e a violência dos que hoje estão matando de maneira discriminada o povo sírio”, opina o historiador Ramalho. Com informações G1