Um ex-bispo da Igreja Universal do Reino de Deus acusa a entidade de ter mantido um esquema ilegal para operar milhões de dólares no exterior por pelo menos sete anos.
O dinheiro, segundo a versão dele, teria sido utilizado para financiar a instituição e sua emissora de TV, a Rede Record, na Europa.
Alfredo Paulo Filho, 49, afirma ter sido responsável pela Universal em Portugal entre 2002 e 2009 e um dos principais auxiliares do bispo Edir Macedo, fundador da igreja, por mais de dez anos.
Antes disso, diz que coordenou trabalhos da igreja em Estados como São Paulo, Rio, Minas e Rio Grande do Sul.
Segundo o ex-bispo, a cúpula da Universal criou uma rota para fazer remessas ilegais de dinheiro, ao menos duas vezes por ano, da África para a Europa.
Os dólares, diz, vinham de uma campanha da igreja em Angola, a Fogueira Santa, e cerca de US$ 5 milhões eram despachados por viagem.
O ex-bispo relata ter participado do esquema e afirma que os milhões de dólares chegavam à Europa em um jato particular, depois de terem sido levados, de carro, de Angola até a África do Sul.
Já em Portugal, diz, os dólares eram trocados por euros e depositados em uma conta no banco BCP como dízimos da igreja. A partir daí, afirma, eram transferidos para outros países europeus.
“A igreja em Portugal sustentava outras igrejas na Europa”, diz Paulo Filho, sobre o motivo da operação.
O dinheiro proveniente de Angola, diz, ficava em sua casa em Portugal até ser depositado na conta da igreja.
“Eu que ia pegar o dinheiro. Sabia que era ilegal”, diz o ex-bispo, que garante que Macedo tinha ciência de tudo.
Há pouco mais de um mês, Paulo Filho passou a postar vídeos na internet com as acusações e o caso foi divulgado pela mídia angolana.
O ex-bispo recebeu a Folha em sua casa no Rio. Mostrou fotos com Macedo e papéis a respeito de sua relação com a Universal, mas diz não ter provas do que relata (leia a entrevista abaixo).
“Minha prova sou eu. Participei e vi”, diz. “O bispo Edir Macedo já falou em reunião de pastores que, para a obra de Deus, vale até gol de mão.”
O advogado e professor da FGV-SP Edison Fernandes disse à Folha que, em tese, haveria crime de evasão de divisas e lavagem de dinheiro no caso.
“Evasão de divisas é enviar ou manter no exterior recursos não declarados. Lavagem é usar em operações lícitas dinheiro ilícito.” Nesse caso, diz, “o dinheiro era ilícito porque não estava declarado”.
Paulo Filho deixou em 2013 a igreja, conta, após trair a mulher com prostitutas. A informação, diz, chegou à cúpula da igreja, que o rebaixou a funções administrativas.
OUTRO LADO
Procurada pela Folha, a Igreja Universal do Reino de Deus afirmou, por meio da assessoria, que “prepara um processo judicial contra o ex-bispo” Alfredo Paulo Filho por calúnia e difamação.
“Portanto, não se pronunciará sobre o assunto fora dos tribunais”, afirmou.
“Confiamos que a Justiça brasileira, mais uma vez, revelará onde está a verdade nesta mais nova tentativa de manchar a imagem da Universal, punindo exemplarmente o mentiroso”, ressaltou. A Rede Record não quis se manifestar.
Fundada em 1977 no Rio de Janeiro por Edir Macedo, a Universal hoje está presente em mais de cem países.
A igreja ganhou corpo com megaeventos e investimentos na mídia e iniciou sua internacionalização ainda nos anos 1980.
Hoje conta com cerca de 7.000 endereços no Brasil.
Assista abaixo um dos vídeos do ex-bispo e logo mais a entrevista dada à Folha:
https://youtu.be/BGS2CgUk-OA
DINHEIRO DA ÁFRICA SUPRIA EUROPA, DIZ EX-BISPO
O bispo Alfredo Paulo, 49, diz que entrou na Universal aos 16 anos. Na entrevista a seguir, ele fala sobre os repasses que afirma ter presenciado.
Folha – Como funcionava o esquema da Universal?
Alfredo Paulo – Vinham dólares da África que eram trocados por euros diretamente com doleiros em Portugal e aí entravam, na conta da igreja, como se fossem dízimos da igreja em Portugal.
E de onde vinha esse dinheiro?
Da Fogueira Santa de Israel [campanha de arrecadação da Universal] em Angola, que dava US$ 13 milhões por ano [valores de 2008]. Desses, US$ 5 milhões ou US$ 6 milhões iam para a África do Sul de carro e, depois, Europa.
Quem fazia o transporte desse dinheiro para a África do Sul?
Pastores que escondiam o dinheiro no carro, no pneu, no estepe, nas portas.
O senhor conhecia esses pastores?
Não. Hoje sei quem são alguns porque chegaram relatos a mim depois que comecei a denunciar [o esquema] nas redes sociais. Mas as pessoas querem se manter anônimas na maioria das vezes.
E depois que o dinheiro chegava a África do Sul, como ia parar na Europa?
De jatinho do bispo Edir Macedo.
Como o senhor sabe que era o jatinho do Edir Macedo?
Ué, porque ele chegava em Portugal e eu ia pegá-lo no aeroporto. Eu que ia pegar o dinheiro. O dinheiro ficava lá em casa, em Cascais [onde ele morava com a mulher e diz que recebia Edir Macedo].
Não passava pela sua cabeça que era ilegal?
Sabia que era ilegal porque era escondido. Mas, na concepção da igreja, aquilo vale porque estamos fazendo para desenvolver a obra de Deus. O bispo Macedo já falou várias vezes em reunião de pastores que, para a obra de Deus, vale até gol de mão.
Edir Macedo sempre acompanhava esse processo?
Sim. Às vezes chegavam no avião o bispo Macedo, a dona Ester [mulher de Macedo], o Renato [Cardoso, genro de Macedo] e a Cristiane, filha do bispo Macedo, e eu ia buscá-los no aeroporto de Tires, em Cascais, ou no da Portela, em Lisboa.
Por que Portugal?
Era mais fácil. Até pelo idioma, pela igreja ser mais forte em Portugal e, quando o dinheiro estava na conta da igreja, podia sair com mais facilidade para outros países. A burocracia nos outros países era muito maior.
Qual era a vantagem de levar dinheiro da África para a Europa?
Creio que o governo de Angola não permitia tirar dinheiro de lá e a igreja em Angola era mais forte que em Portugal, arrecadava mais. A igreja em Portugal sustentava outras igrejas na Europa.
Quem coordenava esse esquema?
Sempre o bispo Edir Macedo. Ninguém faz nada na Universal sem o bispo saber. Essa coisa de que ele não sabe é conversa. Tanto que ele ia no avião. Ele sabe tudo.
Como o dinheiro era transportado no avião?
Na mala, dentro do avião.
Os recursos não eram declarados na saída ou na entrada dos países?
Não. A maioria das pessoas dá dinheiro em espécie na oferta e nem tudo entra nem mesmo na contabilidade da igreja. Um dos meios mais fáceis de lavar dinheiro e fazer caixa dois é igreja.
E como era possível fazer essa movimentação sem fiscalização ou conhecimento das autoridades dos países?
Em Angola eu não sei como funcionava porque nunca estive lá. Eu sei quando o dinheiro chegava em Portugal. Lá não tinha nenhuma participação de autoridades. O bispo Macedo tinha passaporte diplomático.
O bispo Edir Macedo desembarcava direto na pista do aeroporto?
Sim. [O dinheiro] Chegava no avião dele, particular, passava nas malas normalmente. Lembro uma vez que ele [Edir Macedo] chegou comentando com a dona Ester que não ia fazer mais aquilo porque parece que na hora deu algum problema e a polícia pediu para revistar uma mala, mas foram justamente numa mala que não estava com dinheiro. E ele ficou preocupado. Passou perto ali.
Como esse dinheiro era usado na Europa?
Enquanto eu estava lá [2002 a 2009], iam 500 mil euros por mês para a Record Europa e o resto para a igreja lá e em outros países. Em Portugal, contávamos sempre com o dinheiro de Angola porque a gente estava sempre com a corda no pescoço.
Alguma parte vinha para o Brasil?
Não. Pode até ter acontecido, mas não me lembro de ter mandado dinheiro de lá para o Brasil.
O senhor sabe de quando a quando durou esse esquema?
Se dura até hoje eu não sei. Quando eu cheguei lá, em 2002, já existia, mas também não posso dizer quando começou. Enquanto eu estive lá [de 2002 a 2009], era assim que funcionava.
O senhor não tem medo de denunciar agora um esquema ilegal do qual fez parte?
Essa é minha proposta: repor a verdade. Vou ficar escondido?
O senhor apresentou denúncia para o Ministério Público ou para algum órgão competente?
Ainda não. Eu pretendo. Acho que o Ministério Público já deve estar investigando alguma coisa.
O senhor tem documentos ou imagens que possam provar a existência do esquema?
A minha prova sou eu. Participei e vi com os meus olhos. Se eu tirasse fotos não ia chegar aonde cheguei na igreja. O histórico das contas está no banco BCP de Portugal.
Não tem medo de ser considerado réu confesso?
Se sou réu confesso, chegarão à conclusão que o bispo Edir Macedo também é.
O senhor não sabe de nenhum esquema ilícito da Universal no Brasil mesmo tendo sido o responsável da igreja no país na década de 1990?
Não, porque quando fiquei responsável pelo Brasil foi lá atrás… Na hierarquia da igreja, você chega a um certo patamar que não toma decisões em relação a dinheiro. No Brasil eu era mais um arrecadador de recursos e cuidava dos pastores. Eu entregava o dinheiro e depois eles decidiam [o que fazer]. Eu entregava no Brás [a sede da Universal] e, dali, ia para o banco.
O senhor saiu da Universal quando e por quê?
Em 2013 tive um problema pessoal, traí minha esposa e isso chegou ao conhecimento do bispo Macedo. Como eu era um bispo que tinha muitas coisas em meu nome [rádios, emissoras de televisão, etc.] e certo trânsito lá dentro, a igreja me colocou para trabalhar numa parte administrativa no Rio de Janeiro, cuidando de aluguéis. Depois fui transferido para trabalhar na Record de Moçambique e, por fim, num cargo na Prefeitura de [Duque de] Caxias [RJ]. Mandei um e-mail para o bispo Macedo e pedi uma segunda chance. Ele respondeu que não daria e aí eu decidi me desligar totalmente da igreja.
E sua mulher?
Sempre comigo. Ela me perdoou. Se eu tiver que ser preso, não estou ligando para isso. O meu problema maior era com a minha esposa. E isso já está resolvido.
Por que o senhor levou três anos para fazer essa denúncia?
É que meu filho era da igreja até um mês e pouco atrás. Quando saímos da igreja, ele ficou em Londres como auxiliar e, depois, mandaram ele para as Filipinas. Ele tinha 16 anos e começaram a falar que ele não tinha mais pai, que o pai dele era o bispo Macedo e a mãe dele era a igreja. E ele cortou relações com a gente. Voltou só agora. Não queria falar nada enquanto ele estivesse lá.
Com informações Folha