POR SÉRGIO MATSUURA – O GLOBO
RIO — Em poucos campos do conhecimento o embate entre a ciência e a religião se dá de maneira tão profunda como na psicologia. A fé, ou a ausência dela, é importante componente na formação da subjetividade das pessoas. Tanto que em alguns países, como nos EUA, existe a chamada psicologia cristã. Defensores alegam que a religiosidade pode ajudar na compreensão, e até mesmo no tratamento, dos problemas enfrentados pelos pacientes. Já os críticos clamam pela laicidade científica e alertam que fanatismos por parte do terapeuta podem provocar sofrimento.
A partir da laicidade, a psicologia reconhece que a subjetividade é constituída em parte pela religião. Mas a religião pode gerar o fanatismo, que muitas vezes produz práticas de intolerância, o que é inaceitável pela psicologia — afirma Pedro Paulo Bicalho, professor da UFRJ e membro da diretoria do Conselho Federal de Psicologia (CFP).
O assunto ganhou destaque após a nomeação — suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) — no início do mês de Marcelo Hodge Crivella, filho do prefeito do Rio, Marcelo Crivella, ao cargo de secretário-chefe da Casa Civil da prefeitura. Na ocasião, ele foi qualificado como tendo formação em “psicologia cristã”. Com a repercussão do caso, o Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRM-RJ) e o CFP divulgaram nota esclarecendo o reconhecimento “de apenas uma psicologia, que se constitui por 12 especialidades, técnicas e cientificamente validadas. ‘Psicologia cristã’ não é uma delas”.
— Nós recebemos em nossa ouvidoria diversas denúncias de psicólogos incomodados com a divulgação de informações sobre a formação do Crivella em psicologia cristã — diz Bicalho. — Divulgamos uma nota para afirmar à sociedade que a chamada psicologia cristã não é reconhecida como psicologia no Brasil.
Em comunicado publicado em redes sociais, o filho do prefeito afirmou que as informações estavam “equivocadas”. Ele explicou ter concluído o bacharelado em psicologia na Universidade Biola, instituição de ensino cristã evangélica em La Miranda, na Califórnia. Segundo Crivella, ele nunca exerceu a profissão de psicólogo no Brasil ou no exterior e, portanto, está desobrigado a requerer o reconhecimento do curso nos conselhos de psicologia. “Minha trajetória profissional sempre foi ligada à administração e gestão de empresas”, afirmou.
A Universidade Biola confirma que Crivella se graduou com o grau de bacharel na Escola de Psicologia Rosemead em 2008. A faculdade oferece formação em psicologia clínica, mas destaca que sua “missão é produzir graduandos que possam integrar a ciência e a prática da psicologia com a teologia cristã, que estejam preparados para responder às necessidades psicológicas do mundo em geral e à comunidade cristã especificamente”.
CURSOS DE ESPECIALIZAÇÃO
O professor do Southern Baptist Theological Seminary, no Kentucky, e fundador da Sociedade para a Psicologia Cristã, Eric L. Johnson, explica que nos EUA não existe um bacharelado em psicologia cristã, apenas cursos de mestrado e doutorado, que são oferecidos em cerca de 20 instituições. Esse ramo da psicologia é relativamente recente, mas vem ganhando espaço ao longo das últimas décadas.
— Nos últimos 30 anos, a religião e a espiritualidade começaram a ganhar espaço no campo da psicologia por causa dos seus benefícios mentais. Existem estudos que mostram que pessoas religiosas sofrem menos de problemas como o estresse — explica Johnson. — Esse movimento começou com outras religiões, como o budismo e o hinduísmo, e o cristianismo seguiu esse modelo.
Johnson explica que a psicologia cristã faz pesquisas seguindo o rigor e a complexidade da psicologia moderna, “misturadas com a perspectiva religiosa”.
— Tentamos reunir o grande conhecimento que o cristianismo tem. A leitura da Bíblia, a reza e a meditação são usadas há séculos para confortar as pessoas — diz Johnson. — É uma versão cristã. Não tentamos lutar contra a ciência, buscamos apenas o reconhecimento de uma visão diferente do mundo.
O professor aposentado da USP Geraldo Paiva, um dos pioneiros no estudo da psicologia da religião no país, afirma que a chamada psicologia cristã é uma cadeira pouco reconhecida no mundo porque os princípios científicos não coadunam com os preceitos religiosos. Na Europa, por exemplo, não existe essa especialidade. Mas isso não significa que psicólogos não possam ser cristãos.
— Existem psicólogos cristãos como existem médicos cristãos, advogados cristãos ou jornalistas cristãos. O que não pode acontecer é levar para dentro do consultório as referências religiosas — analisa Paiva. — Eu conheço casos de psicólogos que apelam para certos procedimentos religiosos para alcançar uma melhora psicológica. Isso não pode acontecer.
‘FREUD TINHA CONHECIMENTO BÍBLICO’
Essa é a posição do próprio Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos, presente no país desde 1976. Segundo Haroldo Barbosa, representante do Núcleo Regional Sudeste, a entidade agrega profissionais que compartilham da mesma religião e se interessam pelo debate sobre a interface entre a ciência e a fé, mas toda a atuação é baseada na ciência. Barbosa destaca que alguns clientes o procuram pelo fato de ele ser cristão e, às vezes, a religião facilita o entendimento da situação apresentada pelo paciente.
— Se o paciente trouxer questões que envolvam a fé, a religião pode ajudar a compreender a situação. Freud se considerava ateu, mas era judeu por nascimento e tinha conhecimento bíblico — afirma Barbosa.
A psicóloga Marisa Lobo chegou a ter o seu registro cassado pelo Conselho Regional de Psicologia do Paraná em 2014, mas a pena foi suspensa pela Justiça e, posteriormente, substituída por uma censura pública pelo CFP. Na instância regional, a acusação era de que ela oferecia a “cura gay” — o que ela nega veementemente —, mas na instância federal o processo foi movido por ela se apresentar como psicóloga cristã.
Apesar de respeitar a posição da laicidade, Marisa defende o reconhecimento da psicologia cristã no país. Segundo ela, os psicólogos cristãos sabem reconhecer os limites entre a fé e a ciência, e a influência da religiosidade sobre as vidas das pessoas não deve ser negligenciada.
— Não é que a gente vá ficar dentro do consultório recitando a Bíblia, mas se eu não entendo o que o paciente acredita, como posso ser uma boa psicóloga? — questiona Marisa. — O estudo da religião é importante para a psicologia por causa do seu conteúdo simbólico. Por esse motivo, o Brasil deveria reconhecer a psicologia cristã.
Marisa nega qualquer oferta ou aplicação de terapia de conversão, mas assume que algumas questões contrárias à sua crença podem limitar a sua atuação profissional:
— Quando a demanda é sobre aborto, eu me declaro incompetente e passo o caso para outro psicólogo — diz. Com informações O GLOBO