Em tempos eleitorais reacende a discussão sobre o relacionamento das organizações religiosas com o processo eleitoral, mais precisamente acerca dos limites jurídicos da atuação de tais entidades na propaganda eleitoral e no apoio a candidatos. Para alertar as igrejas e aos pastores, a ANAJURE – Associação Nacional de Juristas Evangélicos escreveu 10 tópicos importes à serem observados, sob pena de cometerem possíveis crimes eleitorais.
Em julgamento no Tribunal Superior Eleitoral assentou algumas diretrizes importantes acerca do tema, no Recurso Ordinário nº 265308 (07/03/2017) de relatoria do Min. Henrique Neves. Todavia, ainda restam dúvidas a serem sanadas, notadamente em razão da divergência na interpretação dada pelos tribunais. Assim, nesse breve texto, pretendo demonstrar o que é vedado e permitido legalmente, à luz da legislação eleitoral e do entendimento firmado pelo TSE.
mportante destacar que alguns pontos aqui abordados representam minha convicção pessoal sobre o tema, fazendo uso de legítima hermenêutica legal, mesmo que não coadune em alguns aspectos com a interpretação dada por outros operadores do Direito. Também devo ressaltar que ao dizer o que a igreja pode fazer em termos legais, não estou com isso assumindo que tal ação seja a melhor em termos éticos e teológicos. A presente avaliação se restringe ao campo jurídico.
1. É permitido fazer propaganda eleitoral dentro do templo religioso?
Não. Esta é uma das vedações mais evidentes na legislação eleitoral. O art. 37, caput, da Lei n. 9504/97, veda a veiculação de propaganda de qualquer natureza nos bens cujo uso dependa de cessão ou permissão do poder público, ou que a ele pertençam, e nos bens de uso comum. Segundo o §4o do referido artigo, bens de uso comum, para fins eleitorais, são os assim definidos pelo Código Civil e também aqueles a que a população em geral tem acesso, tais como cinemas, clubes, lojas, centros comerciais, templos, ginásios, estádios, ainda que de propriedade privada.
Entende-se por propaganda eleitoral aquela que leva ao conhecimento geral, ainda que de forma dissimulada, a candidatura, a ação política que se pretende desenvolver ou as razões que façam inferir ser o beneficiário é o mais apto para o exercício da função pública.
É relevante observar que a vedação de propaganda nos templos não se deve à natureza da atividade realizada nestes ambientes, como supõem alguns; como se a proibição se fundamentasse na atividade espiritual das organizações religiosas. A vedação simplesmente ocorre porque o templo se equipara, para fins eleitorais, a bem de uso comum, acessível por qualquer pessoa da população. A intenção da lei não é afastar o elemento religioso do debate político, e não se fundamenta muito menos no tão propalado e mal compreendido princípio da laicidade. A intenção do legislador é afastar a propaganda nos locais que possam ser frequentados por uma grande quantidade de pessoas, de modo a desequilibrar a disputa do pleito.
2. É permitido fazer propaganda eleitoral nas imediações do templo?
Esta é uma questão controversa, cuja resposta vai depender das circunstâncias do episódio.
Recentemente, o TRE-SP decidiu que é proibida a influência religiosa para fins eleitorais, sendo indiferente o local em que a propaganda política ocorre. Aquela corte concluiu que o político foi auxiliado por um pastor com propaganda distribuída nas redondezas da igreja, às vésperas da eleição. O pastor teria anunciado, durante o culto, que ao final entregaria aos fiéis presentes uma carta. Na mensagem, o líder religioso pedia ajuda dos congregados para “escolher o nosso representante para o Poder Legislativo” e sugeria que cada fiel conseguisse a colaboração de mais três pessoas que não são membros da igreja.
De acordo com o relator: “É indiferente o local exato em que foram entregues os materiais de propaganda, visto que as condutas ocorreram em seguida ao anúncio feito durante o culto, revelando o uso da influência religiosa para fins eleitorais”. “A conduta imputada ao recorrente, de conclamar os fiéis a votar valendo-se da influência que possui na qualidade de líder religioso, inclusive invocando o nome de Deus, feriu a igualdade entre os candidatos, de modo a afetar a normalidade do pleito e demonstrar a gravidade apta a ensejar a cassação e a inelegibilidade”, concluiu o presidente do TRE-SP.
O julgamento do TRE-SP equivocou-se ao fundamentar a condenação na “influência religiosa para fins eleitorais”, bem ainda ao reconhecer o abuso de poder no caso. Isso porque, como observado anteriormente, ao proibir a propaganda em templos a legislação esta a se preocupar com o local e não com a natureza do discurso, seja ele religioso ou não.
Da análise da legislação é possível afirmar a proibição da propaganda eleitoral nos limites do templo, o que engloba até mesmo o seu pátio. Tal vedação, também, atinge a propaganda eleitoral realizada fora do templo, logo após anúncio e no contexto do evento religioso. Nesse caso, há um liame entre o anúncio feito dentro do templo, onde a propaganda é proibida, e o ambiente externo – via pública, local em que, em regra, não há vedação da propaganda eleitoral. Todavia, tal conduta deve ser avaliada sob a ótica da propaganda irregular, e não sob a perspectiva de abuso de poder, visto acarretarem consequências distintas.
Situação diferente ocorre se a propaganda eleitoral acontece numa rua em frente ao templo religioso, sem qualquer anúncio ou vínculo com a cerimônia. Nesse caso, não existe qualquer dispositivo legal que proíba tal prática. Isso vale para o templo religioso, mas também para qualquer outro local de acesso ao público (cinemas, clubes, lojas, centros comerciais, templos, ginásios, estádios etc).
3. A igreja pode realizar eventos para a conscientização política de seus membros?
Sem qualquer resquício de dúvidas, as organizações religiosas podem realizar palestras, seminários ou outro tipo de reunião (inclusive no templo) com o propósito de proporcionar conscientização política às pessoas em geral e aos seus membros em particular, desde que não configure propaganda eleitoral. Podem defender, com base na liberdade religiosa (art. 5º, VI, CF), liberdade de expressão e de pensamento (art. 5º, IV, CF) certos valores e princípios morais necessários na ação política, assim como falar sobre os perfis que entendem adequados e inadequados para a ocupação de cargos públicos, à luz de suas convicções morais e religiosas.
4. Uma organização religiosa pode realizar evento fechado para tratar de assuntos políticos?
Questão controversa. Meu entendimento é no sentido de que a vedação contida no art. 37, caput, da Lei n. 9504/97, se aplica no caso em que há acesso à população em geral. Essa é a interpretação teleológica da norma. Se a organização religiosa realiza reunião de participação restrita, a portas fechadas, somente com os seus ministros, por exemplo, para tratar de assuntos políticos, não há falar-se em propaganda irregular, porquanto descaracterizada a sua condição de equiparação a bem de uso comum. Nessa hipótese, a igreja preserva a sua natureza jurídica de bem particular. Até porque, “a aplicação da regra que estende a natureza de bem de uso comum aos bens particulares deve ser vista com reservas, e aplicada em casos em que há demonstração cabal de livre acesso à população que justifique a possibilidade de a propaganda ali afixada gerar desequilíbrio no pleito” (TRE-PR, RE 6228, 2008).
5. Candidatos podem ser apresentados em culto religioso?
Em regra, não há qualquer vedação na apresentação de um candidato que comparece à cerimônia religiosa. Afinal, os candidatos a cargos políticos não estão condenados ao afastamento dos eventos públicos. Porém, tal apresentação não pode conter propaganda eleitoral, ainda que implícita, por meio de exaltação pessoal do candidato.
Conforme decidiu o TSE: “O candidato que presencia atos tidos como abusivos e deixa a posição de mero expectador para, assumindo os riscos inerentes, participar diretamente do evento e potencializar a exposição da sua imagem não pode ser considerado mero beneficiário. O seu agir, comparecendo no palco em pé e ao lado do orador, que o elogia e o aponta como o melhor representante do povo, caracteriza-o como partícipe e responsável pelos atos que buscam a difusão da sua imagem em relevo direto e maior do que o que seria atingido pela simples referência à sua pessoa ou à sua presença na plateia (ou em outro local)”.
6. A igreja pode financiar candidato a cargo eletivo?
Definitivamente, não! É vedado a qualquer organização religiosa a doação em dinheiro ou estimável em dinheiro para candidato. Tal proibição encontrava-se prevista no art. 24, inciso VIII, da Lei n. 9.504/97, dispositivo este que impedia ao partido e ao candidato receber direta ou indiretamente doação em dinheiro ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, procedente de entidades beneficentes e religiosas. Atualmente, tal dispositivo perdeu o seu sentido, podendo ser considerada como tacitamente revogada após o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da ADI 4.650, que declarou inconstitucional em parte o previsto nos artigos 81 da Lei 9.504/97 e 39 da Lei no 9.096/95, ao proibir a doação de pessoas jurídicas para partidos políticos e campanhas eleitorais.
Ou seja, a igreja não pode financiar candidatos ou partidos políticos por se tratar de pessoa jurídica. A vedação engloba, como visto, tanto a doação em dinheiro, como estimável em dinheiro. Isto é, a organização religiosa não pode disponibilizar pessoas, serviços e estrutura em prol do candidato. Tal conduta pode configurar abuso do poder econômico.
7. A igreja pode declarar apoio a determinado candidato?
Evidentemente, a legislação não veda que organizações religiosas declarem apoio a pretendentes a cargos eletivos. Não havendo configuração de propaganda no templo ou doação a candidatos e partidos, é possível que uma dada confissão religiosa possa declarar apoio a este ou aquele candidato.
8. Ministros religiosos, caso sejam candidatos, podem continuar a pregar em suas igrejas?
Ministros religiosos (pastores, padres, sacerdotes etc) não estão obrigados a se afastarem de suas funções caso sejam candidatos. Não estão eles sujeitos à desincompatibilização nos moldes de outras profissões, a exemplo de servidores públicos. Sendo assim, podem manter suas atividades religiosas durante a campanha, com a ressalva da proibição de pedido de votos e propaganda eleitoral no templo, mesmo que dissimulada.
9. Juridicamente, existe “abuso do poder religioso”?
Recentemente, passou a ser utilizado no meio jurídico e na mídia o termo “abuso do poder religioso” para enfatizar ilegalidades cometidas pelas organizações religiosas no processo eleitoral. Ocorre que tal instituto não existe em nosso ordenamento jurídico. A legislação prevê o abuso do poder político, abuso do poder econômico e abuso dos meios de comunicação. Esse tal “abuso do poder religioso” é um termo equivocado, utilizado por aqueles que ou desconhecem a lei ou possuem uma visão distorcida sobre a religião.
O próprio TSE, no Recurso Ordinário nº 265308, destacou que “Nem a Constituição da República nem a legislação eleitoral contemplam expressamente a figura do abuso do poder religioso”. Além disso, o acórdão enfatizou que “todo ordenamento jurídico deve ser interpretado de forma sistemática. A garantia de liberdade religiosa e a laicidade do Estado não afastam, por si sós, os demais princípios de igual estatura e relevo constitucional, que tratam da normalidade e da legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou contra o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta, assim como os que impõem a igualdade do voto e de chances entre os candidatos”.
Em suma, o julgado concluiu que, “ainda que não haja expressa previsão legal sobre o abuso do poder religioso, a prática de atos de propaganda em prol de candidatos por entidade religiosa, inclusive os realizados de forma dissimulada, pode caracterizar a hipótese de abuso do poder econômico, mediante a utilização de recursos financeiros provenientes de fonte vedada”.
Ou seja, o TSE rechaçou a expressão “abuso do poder religioso”, mas deixou claro que as entidades religiosas não podem ser utilizadas para o cometimento dos abusos previstos na legislação. Tal decisão é adequada, em consonância com a Constituição e com a legislação eleitoral. “Abuso do poder religioso” é um termo incorreto porque, além de lhe faltar previsão legal, distingue negativamente a religião das demais esferas e entidades da sociedade. Afinal, por que não se fala em “abuso do poder sindical”, “abuso do poder ruralista”, “abuso do poder empresarial”, “abuso do poder ideológico” ou “abuso do poder dos movimentos sociais”?
O termo é inadequado mais ainda quando defendido como uma espécie de “abuso do poder carismático”, ante a falta de qualquer previsão legal.
10. É legitima a influência da religião na política?
Desde que observados os limites legais, a religião, dentro de um Estado Democrático de Direito, tem plena legitimidade de influir nas discussões políticas e nos temas de natureza pública. Em termos políticos, as organizações religiosas assumem a posição de “grupos de interesse”, capazes de efetuar pressão e defender temas alinhados à sua agenda moral. Com informações ANAJURE