Eu estava em cima do altar da igreja quando vi a Lanna Holder pela primeira vez. Nunca vou esquecer a cena: uma mulher entrando pelo corredor, vindo em direção ao palco com uma saia rodada que cobria os pés, um enorme coque na cabeça e segurando um bebê no colo. Naquele momento alguma coisa mudou dentro de mim. Eu nunca tinha tocado uma mulher antes e até então essa nem era uma questão para mim. Eu não sabia, mas aquela missionária que se dizia ex-lésbica se tornaria o meu grande amor, fazendo com que eu largasse um marido pastor para ficar com ela!
Conheci meu marido nos Estados Unidos
Eu nasci em Mantenópolis, uma cidadezinha no interior de Minas. Cresci numa família evangélica, o que me fez começar a cantar na igreja muito cedo, aos cinco aninhos. Tive meus momentos de “desvio” na época da adolescência, mas voltei de vez aos 17 anos. Experimentei Deus de maneiras muito especiais e íntimas. Decidi dedicar minha vida ao ministério na igreja.
Quando completei 20 anos fui visitar meus irmãos que moravam nos Estados Unidos. Imagine só! Eu mal tinha saído de Mantenópolis e fui direto para Boston, uma grande cidade americana. Nem preciso dizer que fiquei por lá de vez, né? Comecei a trabalhar como ajudante de garçom, pegava no batente o dia inteiro. À noite, mesmo cansada, eu corria para a igreja. Encontrei muitos brasileiros ali que, assim como eu e os meus irmãos, saíram do Brasil para tentar ganhar a vida no estrangeiro. Era um ambiente muito acolhedor, uma grande família na qual eu pude pôr em prática o meu dom: cantar para Deus. Foi nessa igreja, nos Estados Unidos, que eu conheci o João.
Eu não o amava de verdade
João era um rapaz muito bom. Era alto, moreno e bastante bonito, tinha os seus 21 anos. Tão logo a gente se conheceu, virou amigo. De amigo, ele passou para melhor amigo. Andávamos sempre juntos e estudamos a Bíblia. Eu já sentia um interesse dele por mim. Sendo bem honesta, eu não estava tão a fim dele, mas todas as minhas colegas estavam se casando. Crente namora pouco e casa cedo, disso eu sabia, e sentia que estava chegando a minha hora de servir ao Senhor como esposa e mãe. Quem melhor para ser meu marido do que o João? Nossos amigos já estavam pressionando, eu não via motivos para não ceder. Eu lembro que estávamos num carro com vários amigos. Ele chegou, se pendurou pela janela e disse uma data para o nosso noivado. Um ano e meio depois já estávamos casados. Na sequência engravidei e dei à luz o Caleb, nosso filho, que hoje tem 20 anos.
Eu nunca amei o João de verdade. Não romanticamente, pelo menos. Claro que havia amor, mas era amor de amigo, sabe? Éramos muito parceiros, crescemos juntos e nos respeitamos bastante. Mas se eu dissesse que sentia atração por ele, mentiria. De toda forma, o sexo nunca foi uma questão para mim. Durante um tempo pensei até em procurar um médico porque eu simplesmente não tinha vontade, não me interessava, e me sentia muito mal porque eu não conseguia corresponder a ele. Apesar disso eu não podia reclamar da vida. A gente tinha conseguido estabilidade financeira, um filho lindo, muitos amigos e um ministério sólido. Mesmo assim, essa questão do sexo me incomodava. O que estava errado comigo?
Conheci a Lanna, uma “ex-lésbica”
Eu achava que parte dos problemas do meu casamento se dava ao fato de eu viajar muito. Eu percorria muitas igrejas para cantar e meu marido, que já havia se tornado pastor, pregava. Mas nossas agendas não batiam e a gente passava muito tempo distante.
Foi num desses compromissos como cantora gospel que eu conheci a Lanna. Era junho de 2002 e ela estava muito famosa no meio evangélico da época. Percorria o Brasil pregando que Deus a havia “curado” da homossexualidade. Ela se definia claramente como uma ex-lésbica, e já tinha um marido e um filhinho, ainda bebê. O sucesso da Lanna era tanto que ela foi convidada para pregar nos Estados Unidos também, justo na minha igreja. Muitas celebridades evangélicas pregavam por lá e eu conheci muita gente importante. O Pastor Marcos Feliciano, que hoje é deputado e vive discursando contra a homoafetividade, dormiu várias vezes na minha casa, como hóspede. Que ironia!
Ela mexeu comigo como nenhuma outra pessoa
Logo que eu conheci a Lanna, senti algo diferente. Demorei para entender o que era. Ficamos muito amigas, nossos maridos se conheceram, nossos filhos brincaram juntos. Dei até um banho de loja nela! Soltei aquele cabelão, mandei ver numas unhas postiças, cílios e maquiagem. Ela ficou irreconhecível! Nossa amizade foi ficando cada vez mais íntima e acabamos formando uma dupla e tanto: onde a missionária Lanna pregava, a cantora Rosania dava seu show. As pessoas dizem que a gente se apaixonou porque os maridos deram mole, não nos afastaram enquanto era tempo, mas isso é bobagem! Eu e a Lanna nos admirávamos muito, compartilhávamos nossos problemas e confessávamos nossos pecados.
Um dia, numa viagem de carro para Nova York, em 2003, eu estava dirigindo. No carro ia, além de mim, a Lanna e outras duas missionárias. Lembro dela sentada no banco de trás quando nossos olhares se cruzaram pelo retrovisor. Ali eu me senti atraída e percebi que tinha sentimentos por ela, mais do que só amizade. E, ao que tudo indicava, ela correspondia! Me perdi em mil pensamentos, fiquei com o coração na boca. O que estava acontecendo comigo? Quando paramos o carro e as outras missionárias desceram, fiquei com a Lanna ali, tomei coragem e disse: “Lanna, eu acho que estou gostando de você de uma forma diferente”. Ela mandou na lata: “eu também!”. Foi aí que tudo começou.
O primeiro beijo trouxe a certeza de que era meu grande amor
Aquela viagem foi muito difícil. Quando a gente se olhava rolava uma tensão no ar, era bem perceptível. Nós duas estávamos nervosas. Ela fugindo desse sentimento que já era conhecido e eu sentindo pela primeira vez o que era gostar de uma mulher. Comecei a me perguntar “o que está acontecendo comigo?”. Meu coração estava agitado e foi assim que aconteceu: em um quarto de hotel, enquanto uma das missionárias dormia, a outra tomava banho e eu estava sentada na minha cama, perdida nos meus pensamentos. A Lanna estava passando roupa quando, de repente, começou a vir na minha direção. Eu fiquei muito nervosa, sem saber o que ia acontecer. Ela se aproximou, me olhou com carinho e beijou.
Depois desse beijo a gente passou a se evitar. Mas sempre acontecia da gente se encontrar em algum compromisso da igreja e acabava que nenhuma conseguia resistir. Era um misto terrível de culpa e carinho. Eu não acredito que Deus aprovava o que gente fazia, afinal, as duas eram casadas! Mas eu sei que Deus conhecia nosso coração e que era amor verdadeiro. Quando nos relacionamos intimamente pela primeira vez eu senti que tinha me encontrado. Descobri um prazer que eu nunca tinha experimentado e foi tudo muito natural. Ao mesmo tempo, eu sabia que aquele era o começo de um processo de muito sofrimento para mim e para todos aqueles que me amavam.
A aceitação foi o passo mais difícil
A partir daí eu comecei a ler muitos livros e a aprofundar minhas experiências de oração. Eu não conseguia me sentir errada por amar outra mulher, mas me sentia em pecado por causa da traição. Juntas, buscamos a Deus e, cada uma a seu tempo, largamos os maridos. Era o certo a fazer. Primeiro porque Deus não abençoa traição, segundo porque esse amor verdadeiro precisava ser vivido. Ter um grande amor não é algo obrigatório na vida de todo mundo. Nunca tinha acontecido comigo e quando aconteceu foi com uma pessoa incrível chamada Lanna. O fato de ela ser mulher é um detalhe menor. Eu sabia que decepcionaria muita gente, frustraria expectativas e teria que reinventar totalmente a minha vida, mas também sabia que ia valer a pena!
Meu marido reagiu de forma caótica, foi horrível. Meu irmão teve um surto e ameaçou a Lanna, queria machucá-la fisicamente porque achava que a “culpa” era dela. Tive que escondê-la numa cidade vizinha por alguns dias até que a poeira baixasse e ela pudesse aparecer em público novamente. O marido dela, ao contrário, foi tranquilo. Na prática, ela já não tinha um casamento há tempos. Não havia intimidade e carinho e era tudo uma relação de fachada. Isso tornou o divórcio dela mais fácil e rápido que o meu.
Foi tudo muito difícil e doloroso. Deixar para trás o meu casamento, o meu ministério, encarar a vida como uma lésbica evangélica! Eu sei que para muita gente isso pode parecer absurdo, mas para Deus não é! Me dediquei aos estudos, fui conhecer a Bíblia mais a fundo e descobri que Deus também ama os homossexuais e abençoa o amor entre pessoas do mesmo sexo. Tem muita gente por aí que distorce trechos da Palavra de Deus ou que não estuda adequadamente e acaba usando versículos fora de contexto para condenar as pessoas, ao invés de amá-las como Jesus ensinou. Quando entendi isso fiquei ainda mais convicta do que queria para mim. Naquele contexto, a única pessoa que importava para mim era o Caleb, meu filho. Eu ainda fiquei um tempo com ele, mas preferi deixá-lo nos Estados Unidos para que ele tivesse uma educação melhor. Ele gosta muito da Lanna e sempre vem para o Brasil nos visitar. O amor dele é tamanho que agora veio para morar com a gente! Deus é bom!
Criamos uma igreja aberta para gays
Ainda nos Estados Unidos, surgiu no nosso coração o desejo de criar uma comunidade que acolhesse gays, lésbicas, transexuais, todos! Na época, a gente pensava em abrir essa igreja por lá mesmo, mas acabou que a Lanna teve que voltar para o Brasil sem mim! Tive problemas burocráticos e não conseguia sair dos Estados Unidos. Foram dois anos de teste para o nosso amor. Eu já tinha me divorciado e me mudado, ganhava a vida fazendo de tudo, de produção musical a faxina e conseguia levantar um bom dinheiro. Na época eu vivia a tensão de poder reencontrar a Lanna novamente. Eu confesso que foi muito sofrido, pensei que não ia mais dar certo. Dois anos é muito tempo e eu já nem tinha certeza se a pessoa por quem eu havia me apaixonado ainda existia.
Um dia, a surpresa: minha situação com o visto foi resolvida e eu poderia, enfim, viajar para o Brasil e rever a Lanna. Meu coração estava pela boca quando a reencontrei no aeroporto. Naquele momento eu já não tinha mais dúvidas: eu amava aquela mulher e seria feliz com ela. Eu nunca pensei que voltaria para o Brasil, mas foi aqui, na cidade de São Paulo, que Deus realizou a promessa de abençoar pessoas LGBT (Lésbcas, Gays, Bissexuais e Transexuais) por meio do nosso ministério. Há seis anos, abrimos uma igreja em SP. Somos pastoras, continuo servindo a Deus com a minha voz e levamos o amor de Jesus a todos, sem distinção.
Rosania Rocha, 43 anos anos – São Paulo, SP.