Por Ricardo Gondim
O movimento evangélico (ou evangelical, permita-me o anglicismo) é barco que faz água. As aberrações que esse movimento, que se diz cristão, produz ficam cada dia mais horrorosas. Sua credibilidade está no chão. Não há mais remédio que o salve, ou unguento que o cure. Suas lógicas teológicas se tornaram estranhas, seus posicionamentos políticos, questionáveis e suas posturas éticas, uma vergonha.
Há algum tempo, afirmei que não me considero mais parte do movimento evangélico. Causei espanto entre os meus pares. Não volto atrás. Cada dia que passa, quanto mais notícias ruins sobem dos porões denominacionais, e quanto mais o Youtube viraliza piadas sobre o besteirol de seus líderes, mais me convenço de que não sobra, em mim, nenhuma identificação com ele. Pretendo manter-me evangélico por acreditar no Evangelho. Quero, entretanto, distanciar-me do movimento. Já me enxergo em outro acampamento.
Minha auto-excomunhão do movimento evangélico acontece por não conseguir conviver com os auto-proclamados “teólogos”, que guardam doutrinas e conceitos como verdadeiras vacas sagradas. Alguns leram alguma teologia rala, e se acham aptos para sentar na cadeira de Moisés. Não aceito o clima de caça às bruxas, que apedreja e queima os que ousam mexer nas “cláusulas pétreas” de doutrina produzida por gente falível.
Não tolero a intolerância. Não engulo a exclusão de gente por questões de gênero ou por identidade sexual. Não me sinto bem com o discurso fundamentalista que se arvora único interprete dos textos sagrados. Acredito que toda interpretação é interpretação. Nada mais. Ninguém – nem Santo Agostinho, nem Calvino, nem Armínio, nem eu mesmo – tem a última palavra a respeito da verdade.
Minha auto-exclusão do movimento evangélico acontece porque estou cansado de tentar dialogar com quem lê a Bíblia literalmente. Sinto-me fatigado por ter que fazer ginástica na exegese de textos que discriminam a mulher em Deuteronômio, ou que mandam apedrejar meninos e meninas desobedientes aos pais. Não consigo justificar, factualmente, o trecho da Bíblia em que um espírito de mentira sai de Deus para confundir alguns profetas. Não me imagino fazendo contas para explicar, a adolescentes, como a arca de Noé teve espaço para caber todos os insetos, todos os mamíferos, todas as aves, todos os répteis e todos os batráquios do planeta.
Minha auto-exclusão do movimento evangélico acontece porque não tenho estômago para ouvir sermão do tipo “Deus é poderoso, ele vai fazer milagre hoje à noite”; e depois fechar os olhos para os migrantes do Sudão e da Síria. Como propagar cultos milagrosos enquanto brasileiros, iguais a mim, esperam em filas de ambulatórios imundos por algum atendimento médico? Não quero viver uma fé ensimesmada. Não desejo privatizar, em meu individualismo, as ações de Deus. Na verdade, não consigo orar pedindo bênção, proteção, imunidade, prosperidade ou livramento se sei que muitos terão que conviver com o silêncio de Deus. Não pretendo exercitar fé para “ver Deus abrir as janelas do céu” em meu favor sem mudar a realidade social.
Minha auto-exclusão do mundo evangélico acontece porque tenho sede de ser íntimo de Deus. Vejo, todavia, que o movimento se contenta com chavões rasos. Intuitivamente percebo que a Bíblia possui uma riqueza imensamente maior do que é propagandeada no púlpito de muitas igrejas. Desejo viver na liberdade do Espírito e o clero não hesita em aprisionar. Um movimento que sobrevive devido ao medo e à culpa não me encanta.
Minha auto-exclusão do mundo evangélico se deve ao fato de eu estar apaixonado por Deus. Minhas premissas, entretanto, são diferentes do movimento. O alicerce que sustenta a minha espiritualidade é estranho à maioria dos que se dizem evangélicos. Estou cada vez mais curioso com as dimensões do divino. Quero nadar nas águas profundas do Espírito. Reconheço, entretanto, que os pastores e crentes, colados no movimento evangélico, não entenderão a minha sede. Tenho ânsia de ler como nunca; de rir como nunca; de dançar como nunca; de orar como nunca. Minha espiritualidade busca leveza. Estou farto da paranóia dos crentes, constantemente encurralados pelo diabo. Não vivo aturdido com pesadelos de que, se der brecha, serei castigado com rigor por um Deus carrancudo.
Minha auto-exclusão do mundo evangélico acontece porque considero o próximo como amado de Deus. Não me relaciono com as pessoas fora da minha igreja como danadas ou filhas da ira divina. Percebo a graça de Deus como amor que se espalha sobre a terra, semelhante ao sol que, indiscriminadamente, aquece a todos.
Tento desvencilhar-me da linguagem intolerante dos crentes. Já não tenho medo de dizer que aprecio música secular; que considero Médicos Sem Fronteiras como uma bela expressão do grande amor; que gosto de um bom vinho; e que sou louco por correr. O moralismo dos crentes não me alcança mais.
Não me defino por qualquer outro movimento. Anelo ser um livre pensador. Considero as instituições religiosas necessárias, mas nenhuma, sagrada – ou eterna. Muitas tradições cristãs desapareceram ao longo da história, outras se tornaram irrelevantes e inúmeras empobrecem os fieis. Não defendo uma teologia específica. Não estou fechado com a teologia relacional, ortodoxa, clássica ou pentecostal. Não acredito que elaboração humana alguma seja suficiente para explicar o Eterno. Concordo com Paul Tillich: Deus está sempre para além de Deus.
Para onde vou daqui pra frente? Anseio caminhar humildemente com meu Senhor, rodeado de amigos. Tento ser justo. Desejo um coração solidário. Busco parecer, em meus atos, com o Nazareno. Isso me basta.